Filogenia mitológica: o mito através do tempo e espaço
O artigo de hoje é nível hard, mas com um conteúdo espetacular. Pois, uma vez que você esteja aqui no blog Infinite Storytelling, eu aposto que deves amar mitologia. Não somente por curtir as famosas mitologias gregas ou nórdicas; a mitologia define o que é o ser humano. Por isso, quando vi um artigo na Scientific American sobre storytelling e biologia evolutiva ano passado eu achei fantástico. Contudo, ele pode passar desapercebido porque está em inglês e, mais importante, é baseado em biologia evolutiva e suas metodologias. Eu estudei uma coisa ou duas de evolução molecular e por isso vou tentar fazer uma interface entre o artigo científico e o público leigo (pessoas normais...) interessadas em conhecer uma faceta do storytelling que não é muito discutida.
A primeira questão que me chama a atenção é o paralelo feito entre coisas que parecem tão distantes e possuem um comportamento tão semelhante: mitos e adaptações evolutivas. No artigo de Julien d’Huy, A cosmic hunt in the berber sky: a phylogenetic reconstruction of a plaeolithic mythology o pesquisador analisa as mudanças na estrutura de um mito chamado “caçada cósmica”. E como as alterações que esse mito sofreu no tempo e espaço revela a história da migração humana. O que me chama a atenção para esse enfoque é a metodologia usada.
Filogenia são as relações de parentesco ao nível de espécie. Na biologia, elas formam “árvores filogenéticas”. Seria uma forma de árvore genealógica. Mas ao invés de mostrar a relação de indivíduos (avô, pai, filho, por exemplo), a árvore filogenética descreve relações de parentesco entre espécies ou táxons maiores, como por exemplo, toda relação de parentesco do reino animal.
Figura 1: Árvore genealógica: quem nunca? O conceito para aprender aqui é: quanto mais próximos os indivpíduos são (ramos), mas semelhante (fisicamente e geneticamente) eles são. É a noção de ancestralidade. A passagem de genes é vertical, entre as gerações.
Atualmente isso é feito com ferramentas da genética e biologia molecular, através do estudo da variação dos genes. As espécies surgem por vários fatores. Mudança nos genes (mutação) e isolamento geográfico (com o tempo vão ficando tão diferentes e não trocam genes que acabam por virar uma nova espécie) são dois mecanismos de especiação. Ou seja, tempo e espaço são fatores determinantes para surgir novas espécies. E como seria a evolução de histórias?
Genes e Mitemes
Os mitos, como falei das espécies, são entidades que evoluem. Evolução significa mudança. No caso da Caçada Cósmica estudada, é um mito que vem da era paleolítica e fala sobre uma caçada a um animal que termina por este se tornar uma constelação. Há diferentes versões do mito, onde a recontação da história muda qual animal é caçado e qual constelação ele se transforma (constelação Grande carro, Orion ou Pleiades). O pesquisador analisou 19 versões desse mito e seus resultados são surpreendentes.
O que o pesquisador fez foi usar o conceito de miteme, o “gene” mitológico. Como a biologia molecular usa os genes com marcadores para analisar a filogenia através de métodos computacionais estatísticos, pois o gene é uma característica transmitida por sucessivas gerações, o miteme é uma característica da história que é também passada sucessivamente com o tempo e pode sofrer “mutação”. Mais ou menos como o antigo axioma aquele “quem conta um conto aumenta um ponto”. Mais precisamente, altera um ponto. Como isso ocorre?
Digamos que um povo pré histórico na eurásia passa oralmente o mito da Caçada Cósmica, onde o objeto da caçada é um cervo. A população está em movimento e migra para outras partes do globo onde, por exemplo, não há cervos mas há abundância de ursos. As gerações mais novas não sabem o que é um cervo, nunca viram um, mas sabem muito bem o que é um urso. Então alguém resolve mudar esse miteme. A Caçada se altera, evolui. Ela pode evoluir para se adaptar à narrativa local de outras formas. Se antes era relacionada com uma constelação visualizada no hemisfério sul e agora o pessoal tá no hemisfério norte, o miteme pode mudar para a constelação mais visível (de Grande Carro para Órion, por exemplo).
Até aqui estou explicando mecanismos e pode parecer ter impacto nenhum. Mas o que o pesquisador conclui é algo muito legal. Usando mitemes ao invés de genes e mitologia ao invés de espécie, estes dados são analisados em programas de filogenia. Ao invés de mostrar a relação de ancestralidade entre espécies, ela demonstra a relação de ancestralidade de histórias. Dessa análise ele tira conclusões que se pode parear com estudos de evolução molecular: as rotas de migração humanas baseadas nas relações filogenéticas das histórias.
Figura 2: As “espécies”, variações do mito Caçada Cósmica e sua relação filogenética. Através da análise das mutações na história, nos mitemes, é possível descobrir a ancestralidade da história.
Das conclusões desse artigo, algumas coisas são bastante interessantes. Primeiro, que a transmissão da história é na maior parte vertical. Ou seja, as histórias vão mudando com o tempo e sem se misturar com histórias contemporâneas de seu tempo. O estudioso alega que a língua deve prevenir essa mistura. As versões existentes em dado período de tempo tendem a ser passadas como elas são, sem sofrer interferência uma das outras. Outras conclusões são também interessantes. Pois, com a análise filogenética eles conseguiram estabelecer que esse mito tem origem no Paleolítico, há 15.000 anos mais ou menos. Além disso, os dados corroboram as rotas de imigração pós-glacial humana, que era inferida pela análise filogenética de genes. Também encontraram evidências de outra característica evolutiva encontrada no mundo biológico: equilíbrio pontuado. A teoria Darwiniana postula que as mudanças são lentas e gradativas. Porém, na teoria sintética da evolução, há o equilíbrio pontuado, algo que Darwin não foi capaz de levantar hipótese em seu tempo. Este fala sobre mudanças rápidas que levam à especiação rápida. O estudo de d’Hey demonstra equilíbrio pontuado na evolução da Caçada Cósmica.
Conclusão Narrativa
O estudo do Julien d’Hey é deveras interessante por conta da interface que costurou entre mitologia e evolução. A mitologia, por extensão a narrativa, parecem ser coisas distintas e reguladas por leis distintas. Pois a evolução trata de organismos vivos e a narrativa sobre um fenômeno, a princípio, de aspecto cultural. Contudo, é desconcertante entender que ambos seguem as mesmas leis a ponto de ser possível utilizar metodologias de outro campo de investigação do conhecimento. Histórias se comportam como organismos vivos. Evoluem. Assim como adaptações biológicas, elas possuem uma função social e de sobrevivência: passagem de conhecimento e entretenimento. As histórias se adaptam no tempo e espaço.
O artigo se refere à evolução humana e suas rotas de migração. Conclusões não são tiradas especificamente sobre mitologia e narrativa. Contudo, olhando para este aspecto, eu penso em linhas de investigação que poderiam ser tomadas. Algo que me chamou a atenção foi a questão da rota de migração e falta de transferência horizontal de mitemes.
Ao ler a metodologia e discussão do artigo, compreendo que a narrativa era passada verticalmente, com o tempo. Acho que é um lugar comum entender que a narrativa e mitologia é algo intrínseco do ser humano, que histórias são contadas e criadas da mesma forma. Nunca tive argumentos para compreender isso de forma diferente, até ler o artigo. Concluo que não é bem assim, por causa de como é o mundo moderno. As barreiras geográficas e de tempo foram completamente derrubadas pela era da internet. Ou seja. Antes a transmissão horizontal de mitemes era bem reduzida. E hoje, num mundo onde todos falam inglês, conversam e trocam ideias em tempo real, deve haver um impacto significativo na evolução de histórias e criação de histórias.
Uma hipótese que me vem à cabeça é homogeneização. Se os caras usaram conceitos de biologia para analisar mitos e histórias, eu posso tentar fazer o mesmo. Como falei anteriormente, isolamento geográfico é uma poderosa forma de formar novas espécies. Foi o que deu origem a novas versões da Caçada Cósmica. Hoje não há mais isolamento por causa da internet (pelo menos para ideias). Na biologia, se os grupos trocam genes livremente uns com os outros, não há formação de novas espécies. E essa transmissão horizontal, que eu acho que pode ocorrer com a narrativa por causa da internet, não tem impacto na forma de criar histórias atualmente? Que impacto isso teria na “originalidade” de obras e histórias. Me faz um pouco de sentido na cabeça. Uma vez que todo mundo acessa os pensamentos de outros e não se “fecha” para dar origem a coisas mais “espontâneas”, não estará a narrativa se tornando homogênea?
Outra questão que me veio à cabeça é o conceito de miteme e seu comportamento. Podemos usar esse conceito para analisar nossas histórias e promover “mutações”, diferentes versões daquilo que escrevemos? Pode ser uma ferramenta interessante para o processo criativo.
De qualquer maneira, estas ideias vão ficar na minha cabeça e talvez outras conclusões eu possa tirar. Com o tempo eu posso compartilhar que coisas podem surgir.
Origem das figuras:
Figura 1:
https://www.google.com.br/url?sa=i&rct=j&q=&esrc=s&source=images&cd=&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwjouYDks5_UAhVCOyYKHQlPAXYQjRwIBw&url=http%3A%2F%2Fpolentona.com%2Farvore-genealogica%2F&psig=AFQjCNHgLKzCP9lpqO2QE5yczqW3lDLSfQ&ust=1496501258328010
Figura 2:
https://www.researchgate.net/publication/259193627_A_Cosmic_Hunt_in_the_Berber_sky_A_phylogenetic_reconstruction_of_Palaeolithic_mythology
Bibliografia
Artigo da Scientific American sobre a evolução de histórias (pra ler tem que comprar...)